sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

VERGONHA DE MIM


(RÔ Campos)

Finalmente a inspiração bateu. Acho que foi a garrafa de vinho que tomei durante a ceia na casa de minha mãe. Um vinho chileno, mas barato, é bem verdade; não chegou nem a R$ 20,00. O negócio estava entalado na minha garganta, e nada fluía. Agora, depois do vinho, desentalei...E chorei. Além do mais, antes de começar a escrever isto aqui, dei uma passeada pelo Face, e me deparei com várias postagens de amigos, com fotos de suas ceias fartas...E chorei de novo.

Antes de ontem, graças à minha irmã Renata Campos, que me colocou a par da situação, fui visitar uma família que vive em um rip-rap (nem sei se é assim que se escreve, mas acredito que vocês devem saber do que estou falando), entre a rua Tefé e o Igarapé do 40, no Japiim.

Essa família "vive" em um cubículo, algo em torno de vinte metros quadrados, divididos em dois compartimentos. No primeiro, encontramos uma geladeira queimada, uma máquina de lavar, um velho sofá, um fogão, uma tv, um varal com várias roupinhas de crianças secando e umas duas ou três redes enroladas e penduradas no armador, e ainda, no chão, um velho ventilador.

No compartimento de trás, um velho freezer, onde estão acondicionando os alimentos perecíveis, já que a geladeira está com defeito; para que não congelem (aqueles alimentos que não podem congelar), ligam e desligam o freezer. O restante não deu para eu visualizar, pois sequer coloquei os pés no primeiro compartimento, dada a minha angústia desde o primeiro momento.

Nesse cubículo, com um fedor insuportável, moram sete pessoas: a velha vó (que cuida das crianças e, para sobreviver, além de contar com o Bolsa Família, no total de R$ 212,00, lava roupa para fora), a mãe, que vive drogada,e provavelmente encontra-se grávida, e cinco crianças entre 1 e 12 anos, sendo dois meninos e três meninas. A menina mais nova, com cerca de 4 anos, desnutrida, contam-se as costelas. Perdeu o "leite do meu filho" porque a mãe não levou para pesar. A vó, de Parintins, me contou que veio parar aqui em Manaus há 5 anos, quando precisou trazer um filho para se tratar do coração, mas que veio a óbito, com cerca de 9 anos, vítima de infarte, ali mesmo (me apontando o lugar com o indicador). Depois, um outro filho, desgostoso por haver sido traído pela mulher, matou-se.

Continuando a conversa, a vó me falou que os outros seus filhos, que moram em Parintins, vivem revoltados com essa situação, e querem porque querem levá-la de volta, com o que ela não concorda. Disse-me que lá é tudo muito mais difícil, e que aqui ninguém passa fome; que quando não tem o que comer pede algum dinheiro emprestado e compra ovos ou salsicha; que não gosta de dar salsicha para as crianças, mas, muitas vezes, não tem outro jeito. No final, sentencia: não posso abandonar essas crianças.

Todos os dias é a velha vó que leva as crianças para a escola e vai buscá-las. Confidenciou-me que as crianças não podem parar de estudar, nem faltar, senão o Bolsa Família é suspenso.

Para morar naquele cubículo horroroso, com fedor insuportável, paga de aluguel R$ 270,00 por mês.

Antes de ir até lá, passei no supermercado com minha secretária, e fiz algumas compras. Eu ainda não sabia qual era a real situação, mas pensei: vou levar um monte de besteira, afinal de contas, é Natal, e criança lá quer saber de outra coisa, seja lá quem for a criança. E compramos bolo, biscoitos, panetone, chocolates, refrigerantes, sucos da Kapo, Itambezinho em caixa, uva passa, leite em pó, macarrão, queijo ralado etc. E foi uma festa!!!

Saí de lá com a certeza de que eu não estou com nada, não sei de nada, não sou ninguém. E que, se existe uma guerreira, é essa vó. Senti vergonha de mim.

Pensei: Freud estava certo (eu outrora, quando cheguei a fazer alguns módulos de Psicanálise, em pós-graduação, discordara veementemente disso). Os pobres, os miseravelmente pobres, não são analisáveis. Como realmente analisar alguém que luta para sobreviver? Como alguém que diuturnamente vive a se debater no fogo da miséria vai se perder nas teias de problemas existenciais, ou em razão de amores perdidos, ou, ainda, em sonhos desenfreados de consumo???

E, como disse meu filho Éric, o que esperar de tudo aquilo ali? Que horizonte existe para aquelas crianças? O que resta a elas, senão a prostituição, as drogas, o mundo do crime? E, assim como aquela família, quantas outras semelhantes existem aqui, no Brasil, no resto do mundo?

E, novamente, senti vergonha de mim. Senti vergonha dos meus problemas, dos meus desejos, das minhas aflições, dos meus anseios. Senti vergonha de me estressar com a conta de luz, que passa dos mil reais mensais, com a tv do meu quarto que queimou há 1 ano e que não pude ainda comprar outra, para assistir ao jornal e às novelas sossegada (o falatório é grande, idem a zoada, na saleta onde está a outra tv), com o velho split que já não refrigera o meu quarto como eu gostaria,com a justiça lenta, morosa, o processo que anda a passos de cágado, cuja execução não consigo finalizar para receber os créditos do meu cliente e, também, meus honorários, dos quais vivo exclusivamente, pois não tenho outra fonte de renda, com minhas dívidas que não consigo liquidar, com a viagem que planejo e não pude fazer até hoje, a casa desbotada que não pude ainda pintar. Senti vergonha da humanidade. Mas nós não passamos mesmo disso: somos humanos, demasiadamente humanos.

E tomei uma decisão: vou adotar aquela família. Vou tentar dar uma luz àquelas crianças e àquela velha avó, guerreira, mas certamente cansada. E crente, apesar de tudo.Vou reunir uns 10 amigos, para, juntos, adotarmos aquela família. Certamente será pouco para cada um. Mas a reunião de todos representará muito para aquela família. E com certeza estaremos abrindo horizontes para aquelas 5 crianças...E a 6ª já está a caminho.
E sei dizer mais uma coisa a todos vocês: nunca mais serei a mesma pessoa. Mudarei para melhor, é claro.